quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O FANTASMA DOS MARES

     A historia que se segue é uma narrativa “real” de um navio que não afundou nas águas do oceano, mas que também não conseguiu chegar ao seu destino. É como se uma maldição pairasse sobre ele, que não permite sua destruição, transformando a história  numa lenda e o seu protagonista, o navio Bayachimo , num fantasma a vagar para sempre  sobre os mares.   

Depoimento do Sr. Olaf  Nielson Ole, engenheiro naval,  diretor do Estaleiro Nacional da Suécia. — O Sr. Olaf nos atendeu pessoalmente em sua casa no arredores de Estocolmo, onde, aos 88 anos, vivia com sua esposa Brigida.

     — Naturalmente, lembro-me bem do Bayachimo.  Foi a encomenda mais importante feita ao nosso estaleiro  até então. Foi no ano de 1914, a construção de navios era uma atividade que evoluía rapidamente ,novidades apareciam todas as semanas, a tecnologia da navegação a vapor estava em pleno desenvolvimento. Recebemos da  Companhia da Baía de Hudson  a encomenda de construir um cargueiro vapor de  1300 toneladas, para ser usado na coleta e no transporte de peles e suprimento aos caçadores de peles ao longo da costa oeste do Canadá.  Tinha de ser uma embarcação forte, resistente, a fim de se safar dos perigos apresentados à navegação marítima naquelas paragens, sujeitas a constantes tempestades, às banquisas que se formavam de uma hora para outra, aos icebergs e bancos de gelo.
     — A realização do projeto resultou num navio da classe cargueiro-vapor, de 1.322 toneladas, elegante e bem proporcionado, forte com o casco de aço reforçado por um arcabouço de centenas de vigas que reforçavam a sua resistência às piores situações. Foi um dos mais importantes navios construídos naquele ano, em todo o mundo. Com uma grande chaminé, ponte inclinada, proa comprida e elevada, era bastante sólido para resistir a qualquer iceberg  ou geleira polar. Apresentava muitos itens de segurança extra, tendo em vista o grande esforço a que seria submetido em suas viagens.
     — Uma exigência  feita pela Companhia da Baía de Hudson  foi a colocação de  dois guindastes extras, a fim de desembarcar rapidamente, sob as mais adversas condições, escaleres,   mercadorias ou a tripulação, tendo em vista a rapidez com que as tempestades e borrascas aparecem na região por onde o navio iria viajar. Alem disto, na proa do navio foi colocado um potente motor que acionava um novo sistema quebra-gelo, capaz de arrebentar sem dificuldade a camada de até meio metro de gelo.

Depoimento do Capitão John Cornwell, capitão do navio "Bayachimo", em dezembro de 1963. —  O Capitão Cornwell residia na ocasião em Newquay, simpática vila à beira-mar,situada  em Devon, na costa oeste da Inglaterra.

     — No dia 6 de julho de 1931, o Bayachimo  zarpou de Vancouver, na  Colúmbia Britânica, para a viagem habitual que normalmente durava de 9 meses a um ano. Éramos 37 tripulantes, todos homens rijos e experimentados, que eu havia escolhido a dedo. A maioria estava comigo há anos, mantínhamos uma grande camaradagem. Este espírito de companheirismo era essencial,  pois que o roteiro que percorríamos era difícil, cheio de perigos e exigia coragem e experiência.
     — Naquela ocasião o Bayachimo era um navio de mais de 15 anos e sua solidez tinha sido colocado à prova em muitas viagens. Foi um dos primeiros navios usados no comércio de peles com as feitorias dos esquimós no norte do Canadá, mais precisamente no Mar de Beaufort.  Seu percurso regular era ao longo de um périplo de aproximadamente 3.2oo quilômetros, numa das zonas de navegação mais traiçoeiras do mundo.  O itinerário era preciso: distribuía víveres, combustíveis e outras mercadorias, fazendo escalas sucessivas em oito estabelecimentos da Companhia Baía de Hudson.  Nessas feitorias o navio ia carregando os porões com couros e peles.
       A viagem de ida foi normal: por dias e noites,   na luz brumosa de um sol que jamais se esconde,  era verão no Norte. O  Bayachimo  seguia firme na rota,  rumo ao destino da sua viagem: o litoral da Ilha Vitória. Dali, com os porões  carregados, dei ordem para regressar a Vancouver.
     — Naquele ano o inverno chegou bem mais cedo, e as tristes e desertas extensões do Grande Norte se cobriram rapidamente de geleiras. Os ventos foram violentos, o congelamento das águas intensificou-se, e a banquisa, temida inimiga dos marinheiros, formou-se na região muito mais depressa do que de costume.  Em 30 de setembro, apenas uma pequena passagem de águas navegáveis era praticável. No dia 1º de outubro, o estreito caminho foi obstruído pelo gelo, que se fechou em torno do Bayachimo.
     — Lembro-me bem de que ficamos completamente à mercê da massa de gelo: o navio, com as máquinas paradas, imobilizado, diante de Barrow, uma aldeia do Alasca construída pela Companhia, como diversas outras naquele remoto litoral. Uma violenta tempestade de neve se aproximava. Meus homens e  eu nos dirigimos para os abrigos, atravessando  a extensão gelada de cerca de um quilômetro que nos separava do navio.  A marcha foi difícil. Ali ficamos dois dias, enquanto lá fora rugia o vento, a neve caía pra valer. Não nos arriscamos a sair e ficamos semimortos de tanto frio.
     — No terceiro dia, amainada a tempestade, o tempo clareou. Para nossa surpresa, a banquisa afrouxou seu cerco, o que era um fato extraordinário. O navio ficou livre para navegar. Corremos para bordo e o navio, posto em funcionamento, avançou a todo vapor, durante três horas, na direção do ocidente . Pensei que estávamos livres do perigo. 
     — Mas o tempo voltou a fechar. O gelo voltou a cravar suas garras no cargueiro. Ficamos parados por uma semana. A tripulação ficou inquieta. Fazíamos exercícios diariamente, jogos, cantávamos em grupo, enfim, todo o possível para evitar que o desespero nos dominasse. No dia 8 de outubro, ouvimos um terrível estalido: a banquisa rompera-se novamente, rachando na superfície próxima do navio, exatamente onde alguns membros da tripulação jogavam bola.
     — Tive uma chance de direcionar a proa do Bayachino para a costa. O curso era lento. Temi pelo meu navio. Por mais robusto que fosse o cargueiro, acabaria sendo triturado pelo gelo, tal qual uma casca de noz, se o tempo ficasse mais frio. Os marinheiros, contudo, mantinham a esperança de chegarem a um abrigo no litoral, porto ou baía, e serem salvos, juntamente com o navio.
      — Novamente impedido de prosseguir a viagem no dia 12 de outubro, o navio parou. A situação ficara crítica. Nossos víveres estavam no final. O frio já fizera algumas vítimas dentre a tripulação: um marinheiro morreu e dois outros perderam dedos dos pés, congelados. Atendendo ao meu pedido pelo rádio, a Companhia da Baía de Hudson enviou, para nos socorrer, dois aviões da base de Nome, distante cerca de mil quilômetros ao sul. Vinte e dois  tripulantes foram resgatados. Permaneci com treze  homens no local, à espera do momento em que o gelo derretesse e o navio, com a valiosa carga,  pudesse ser manobrado. Sabia que isto poderia demorar até um ano. De novembro  para diante o inverno só iria piorar.
     — Tratamos de construir um pequeno abrigo sobre a banquisa, num lugar mais firme,  a cerca de um quilômetro do navio.  Entretanto, nossa permanência ali foi breve e surpreendente. Na noite de 24 de novembro,  escura como breu, uma terrível tempestade de neve  se abateu  sobre nós. Ficamos acuados no nosso refúgio de madeira por quatro  dias e quatro  noites. Quando enfim voltou a calmaria, saímos e constatamos o pior: o Bayachimo havia desaparecido sob uma montanha de neve de mais de 20 metros de altura.  Inspecionamos cuidadosamente a região ao nosso redor e não encontramos qualquer traço do navio. Concluí que ele se despedaçara na tempestade e terminara afundado.
     — Preparamo-nos para partir, rumo ao sul, na direção de Point Lay, que calculava estar a uns 300 quilômetros. Seria uma caminhada dificílima, estávamos em pleno inverno. E o inverno, naquela latitude, no extremo norte do Alasca, é o maior inimigo do homem. Alguns dias de caminhada e encontramos um esquimó, caçador de focas, que nos deu uma notícia incrível: ele vira o navio a cerca de 70 quilômetros do onde nos encontrávamos. Guiados bondosamente pelo aventureiro, avançamos penosamente até o local indicado: e lá encontramos o Bayachimo !
     — Compreendi que não poderia salvar o meu navio: o gelo o mantinha sob suas garras, num abraço fatal. Mandei  retirar do porão as peles mais valiosas, e pedi novamente auxílio pelo rádio.   Uma avião veio nos buscar de volta, juntamente com as melhores peles.
     — Naquele momento, quando, da janela do avião,  vi pela ultima vez  o Bayachimo, tive a clara intuição de que ele começava a transformar-se em um navio fantasma, um joguete à deriva nas imensidões polares, conduzido pelos poderosos caprichos do gelo, dos ventos e do oceano.
           
Registro no "Livro de Ocorrências Gerais"  na sede da  Companhia Baía de Hudson  em Vancouver, Canadá.

     "24 de fevereiro  de 1932 - Através do posto de Wales chegou a notícia de que alguns esquimós da região avistaram novamente o Bayachimo, a aproximadamente 120 quilômetros do ponto onde foi dado como desaparecido."

Depoimento de Leslie Melvin, caçador e explorador, fazendo viagens constantes na região de Nome, no extremo leste do Alaska.

     — Sou Leslie Melvin, vivo da caça na região de Nome para o norte, trafegando sempre pelo litoral. No dia 12 de março (de 1932) vinha da  Ilha Hershel  quando avistei um navio que flutuava, tranqüilo, perto da costa. Seu  nome era Bayachimo.  Gritei, chamando pela tripulação. Não obtive resposta. Subi, então, a bordo e verifiquei que estava completamente deserto, abandonado.  Andei por todo o navio, desci aos porões: estava cheio de peles, todas em boas condições. Como estava sozinho, sem equipamento e a centenas de quilômetros da minha base, nada pude fazer para transportar as peles. O que foi uma pena, pois elas valem milhares de dólares, sem dúvida.
  
Registro no "Livro de Ocorrências Gerais", continuação do supra-citado.

     "15 de outubro de l932 - Informações recebidas do Posto de Nome dão conta de que  um grupo de engenheiros, prospectores de petróleo, viu o Bayachimo, nas imediações do Cabo Lisburne, 50 quilômetros ao norte de Nome. Os engenheiros estiveram a bordo e encontraram tudo em ordem, a carga intocada."

Depoimento de Nikki Vovka, líder de grupo de caçadores esquimós, em março de 1933, para o jornalista Hermann Lindstrom, de Toronto, Canadá.

     — Nosso grupo pescava no litoral, na primavera deste ano (1933). Vimos um navio flutuando tranqüilamente. Ao nos aproximarmos, gritamos, não tivemos resposta. Subimos. O navio estava abandonado. Enquanto estávamos no navio, desabou uma tremenda tempestade. Tivemos de permanecer no navio durante 10 dias. Sem comida e
agasalhos, foi terrível. Quando saímos, deixamos o navio tal qual o encontramos. É um navio fantasma, tivemos muito medo durante os dias que passamos dentro dele. O nome do navio era Bayachimo.

Novo registro no "Livro de Ocorrências Gerais" da Companhia Baía de Hudson

     " 11 de agosto de 1933 - Novas informações de Prudhoe registram que o Bayachimo  foi visto dirigindo-se lentamente para o norte, adentrando-se para o Mar de Beaufort. A região é remota e inviabiliza qualquer operação de resgate.

Declaração do Sr. Arnold Krenkold, relações-públicas da Cia. Baía de Hudson, em  dezembro de 1970, em entrevista para estação de TV Canadá Continental News.

       Atualmente, não se sabe se o Bayachimo  continua à deriva ou afundou. As informações posteriores  a 1933 são bastante vagas e não forneceram à CBH  quanto à  possibilidade de  que o navio pudesse ser abordado.  Ele foi visto em julho de 1934, por um grupo de exploradores, que permaneceram algumas horas a bordo.  Em setembro de 1935, estava de novo nas costas do Alasca. Depois de 1939, foi visto  por diversas vezes, por esquimós, exploradores e aviadores. Sempre em lugares remotíssimos e além da possibilidade de resgate.
     — Foi avistado em março de 1962, ainda por esquimós. E em 1969, foi visto pela última vez. Passados 38 anos após seu abandono, estaria entre o cabo Icy e a ponta Barro, de novo preso numa banquisa.  Sem condições de ser resgatado: a  carcaça  velha e enferrujada, e não se mencionando  mais a sua valiosa carga de peles.
     — A CBH  não mais envidará esforços no sentido de localizar ou resgatar o Bayachimo, que já se tornou uma lenda no Grande Norte. As notícias mais recentes são tão vagas, que as atribuímos à lenda e à fantasia.   Parece que consegue escapar do cerco da banquisa e sobreviver às mais violentas tempestades polares. A natureza é incapaz de destruí-lo e  os homens são incapazes de salvá-lo.

Belo Horizonte, 18.09.2000
conto # 51 da Série Milistórias - Incluido no "Fantasma dos Mares"-
vol. 5 da Coleção Milistórias